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Não estão todos, mas quase. Foi assim numa das noites de Natal em 2007; o Avô Mateus na companhia do Josias, da Abigail, do Misael, do Manelito, da Gabriela, do Rafa, do Bruninho, da Ester, do Santiago, da Beatriz, do Alexandre, da Maria, do Diogo e do Tiago.

Avô Mateus e bisnetos (Natal 2007)

Enganam-se os que pensam que nada se faz durante as férias: sendo uma actividade a tempo inteiro, fazer férias não deixa de providenciar alguns momentos de desocupação de tempo que são prontamente aproveitados por aqueles que gostam de escrever, sobretudo os que gostam de escrever livros sobre a vida de algum antepassado recente. Talvez seja este o meu caso…

As férias vieram a jeito para dar um forte avanço na escrita, sobretudo na harmonização de tudo o que tinha sido escrito anteriormente com o conteúdo da inigualável carta do Avô, e com uma ou outra história nova que entretanto apareceu.

Entre tudo o que foi feito, destaco aqui a descoberta do atribulado passado sobre rodas do Avô. O resultado da compilação e processamento de toda a informação – que inicia no momento em que o Avô começou a pedalar e se estende até às memórias das recentes viagens de Mercedes com os netos – foi um dos mais extensos capítulos, cheio de pequenas histórias que oscilam entre o cómico e o trágico. E é do meio de um atribulado passado sobre rodas que emerge uma nova faceta do Avô, praticamente desconhecida da família e amigos. Nesta faceta existe um detalhe que merece ser já aqui avançado pela sua espectacularidade e imprevisibilidade: o Avô foi motoqueiro!

Muito antes de haver carro, houve mota. E uma mota muito especial… a famosa Kreidler K50 de fabrico alemão. As histórias em volta desta motorizada – e do subsequente percurso automobilístico – são tão interessantes que me apetece começar já aqui a contar. Mas por agora ficam guardadas por mais uns tempos. Só digo que vai valer a pena esperar por elas…

Kreidler k50 (1950) - Foi numa motorizada igual a este que o Avô Mateus se deslocou durante muitos anos

Para aqueles a quem a curiosidade foi despertada pela fotografia aqui deixada na semana passada, é tempo agora de alguns elementos adicionais. Aquela é “A Fotografia”, não apenas mais uma no meio de tantas do Avô. A fotografia simboliza um tempo, uma época, um espírito.

Pela primeira vez no demorado processo de escrita do livro faltaram-me as palavras. A fotografia mostra mais do que consigue desenhar com letras. Em relação a ela e a todos aqueles rostos, apenas consegui dizer que “Estão mergulhados numa atmosfera invisível de um sentimento de intemporalidade, como se aquele momento perdido no passado se prolongasse para sempre.”

Já nos últimos anos da sua vida, o Avô decidiu afixar esta fotografia no seu quarto, juntamente com uma do baptismo da Bisavó Ludovina. Por vezes, quando o visitava, ficávamos a olhar para ela algum tempo em silêncio, que invariavelmente acabava por ser apagado pelo Avô numa lembrança dos nomes daqueles amigos, na recordação daquele dia e, sobretudo, no lamento inaudível de um coração que acusava a saudade daquele tempo.

A fotografia era uma janela para o passado. Percebi isso na altura. Ao olhar para ela o Avô revivia aquele dia, e por instantes reencontrava os seus amigos e voltava a sentir a alegria daqueles sorrisos. Agora, e só agora, ao escrever sobre ela, percebi que afinal era também uma janela para o futuro. O Avô lembrava os amigos que partiram, mas antecipava também o reencontro final com eles. E aquilo que o Avô sentia era, acima de tudo, uma nostalgia pelo que estava para vir.

Com a alusão ao espírito desta fotografia e ao seu significado, terminei mais um capítulo do livro. O fim está agora bem mais próximo…

Por agora fica apenas esta fotografia e algumas palavras do livro que a descrevem.

“Nela alinham vinte e um rostos, distribuídos ao longo de duas fileiras; maior parte deles partilha um sorriso idêntico, muitos seguram uma Bíblia nas mãos como se fosse uma extensão natural do corpo. Entre eles está o rosto sorridente do Irmão Mateus, um homem de aspecto jovial e apelativo. Estão mergulhados numa atmosfera invisível de um sentimento de intemporalidade, como se aquele momento perdido no passado se prolongasse para sempre. Consegue-se sentir o calor daquele dia, e a frescura das águas que abraçaram todos os que nele se baptizaram.”

Durante os últimos tempos escrevo sobre o percurso inicial do Avô Mateus depois da sua loucura de entrar num “Salão protestante” e, imaginem só a alienação, se ter tornado protestante. São muitas as histórias em torno desta aventura, e ainda mais sobre as suas implicações, mas isso é matéria de livro.

Um dos aspectos que mais me tem atraído neste início de percurso é o envolvimento do Avô com outras pessoas de igual mente e espírito, em especial os que viriam a ser os bons amigos. Ainda não consegui muita informação de como vieram a conhecer-se e como o seu percurso foi trilhado em conjunto daí para a frente.

Tenho procurado mas não encontrado. E é aqui que tudo se torna mais interessante. Não encontro o que quero, mas encontro o que não espero. Um destes dias folheava um caderno de notas mais antigo e, inesperadamente – como tanta coisa no percurso da escrita deste livro -, encontrei uma folha subtraída a uma agenda com uma referência a um destes amigos do Avô, o Sr. Timóteo.

A página assinala o dia 23 de Janeiro de 1998 e contém unicamente uma curta frase:

O Sr. Timóteo já está com Adonai

Do resto da agenda não sei. Nem quis saber no final de 1998. Guardei apenas esta página porque numa linha apenas estava registada a coisa mais significativa daquele ano. Na altura não conhecia ainda as histórias partilhadas entre o Avô Mateus e o Sr. Timóteo, mas este era já um bom amigo, contra todas as probabilidades impostas pela significativa diferença de idades entra nós. Agora sei que na preocupação e interesse que ele demonstrava, por mim e os primos, pesava muito o facto de sermos netos do Mateus. Para o Avô e o Sr. Timóteo, e tantos do seu tempo, ser amigo de alguém implicava ser amigo da família.

O dia em que o Sr. Timóteo partiu foi um dia marcante para mim. Sei que foi ainda mais marcante para o Avô Mateus, porque se despediu de um companheiro de longa viagem.

Ao fazer as malas para uma viagem podemos escolher o que levar. E o que deixar para trás. Não fazemos o mesmo com as nossas memórias. Elas viajam connosco para todo o lado. Dependem de onde viemos, e não para onde vamos.

Por vezes, no meio de uma viagem, algo nos faz lembrar outras viagens, outros tempos. Não há maneira de nos habituarmos à improbabilidade da recordação inesperada de certas memórias. E ainda bem, porque muitas delas são puramente excepcionais.

Entro no quarto de hotel, a milhas de casa, num outro país. Inicio de imediato a rotina do viajante – inspeccionar o alojamento que não causou uma boa primeira impressão. Nem segunda ou terceira. O estilo Vitoriano, algo apelativo, do exterior do edifício esconde a decoração retro-kitsch do quarto, que é feio, independentemente do ângulo que se olhe. Não é uma questão de ângulos, ou de gosto. É funcional, mas feio. Sem pensar, abro uma gaveta de uma peça de mobiliário que se assemelha a uma secretária, mas cuja função desconheço. Através da pequena frincha – porque nestas coisas nunca convém abrir mais que uma pequena frincha, não vá de lá saltar alguma forma animal com 3 ou mais pares de pedúnculos – e vejo letras douradas contra um fundo vermelho. A minha atenção está presa. Abro a gaveta mais um pouco, agora sem medos.

PLACED BY THE GIDEONS. Lembro-me imediatamente do Avô Mateus.

Faz agora sentido o pensamento sobre lembranças inesperadas?

Foi através do Avô Mateus que conheci este movimento que atravessa fronteiras e tem como objectivo superior fazer da Bíblia um bem comum e acessível a todos. Quem conhecia o Avô Mateus sabe o amor que tinha pela Palavra e ao quanto ele se entregava para que outros a conhecessem. Se havia um grupo de pessoas interessadas em fazer chegar a Bíblia aos outros, o Avô só podia estar do seu lado. Daí o seu envolvimento com os Gideões. (curioso, o nome em inglês soa bem melhor…)

Hoje é difícil imaginar que, noutros tempos, uma Bíblia poderia ser a única fonte de vida nas horas mortas de um quarto de hotel perdido no meio do nada. Entre deixar o olhar vaguear pelas paredes feias do aposento, ou deixá-lo percorrer o texto de um livro de fama duvidosa, muitos escolheram a segunda opção. Não se sabe ao certo o que terão lá encontrado. Deus?

Depois veio a televisão, e agora o laptop e o wireless. Distracção não falta. Mas apesar dela, e das paredes feias e do estilo repassado da decoração, a Bíblia continua na gaveta, pronta a ser encontrada e a revelar o Deus que espera ser também encontrado no meio deste mundo que, como este hotel, tem uma fachada que promete algo interessante, mas que depois de visto por dentro, é geralmente retro-kitch, independentemente do ângulo com que se olha. Porque não é uma questão de ângulos, ou de gostos. É mesmo assim.

Lembrei-me do Avô e do seu amor pela Palavra, sobre o qual já escrevi abundantemente. Percebo agora que sem a visão do mundo que ele nos passou, este não passaria de um local retro-kitsch (na melhor das hipóteses). E muito mais pequeno. Sem Deus.

Lembrei-me que tenho de acabar de escrever o livro rapidamente.

Um dos achados mais curiosos na tal visita ao passado em casa da Tia Micaela foi uma fotografia da década de 80. Assim que a vi percebi que teria de ser aqui publicada. Só era preciso um texto em conformidade com o momento.

Um destes dias desafiei um outro neto a escrever uma entrada aqui para o blog. Não dei qualquer sugestão quanto ao tema. O primo aceitou o desafio e escreveu.

A fotografia e o texto contam histórias relacionadas sobre um mesmo tema: as festas com o Avô. Foi mais do que pura coincidência. Foi providência. Aqui seguem ambos.

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As festas em família

Neto André

Uma das memórias que é impossível separar do Avô sempre foi a das festas.

A família desde sempre teve uma agradável aptidão por se reunir, qualquer que fosse a ocasião! Eram aniversários, casamentos ou simples almoços e jantares sem razão aparente, sendo que uma das imagens de marca, sempre foi uma ou duas violas que do nada sempre surgiam.

No entanto um dos momentos altos das reuniões em família, sempre foi o Natal!

Inicialmente a casa do Avô Mateus servia de local privilegiado para tudo acontecer e mais do que a comida, a memória mais remota que guardo, é estarmos na sala de estar da casa, esperando ansiosamente a chegada dos presentes, com o Avô sorridente sentado num dos sofás, divertido sem dúvida pela natural alegria e expectativa dos muitos netos que pululavam pela sala.

Memória de uma das festas de Aniversário do Avô Mateus (algures na década de 80)

O prazer que tínhamos em estarmos juntos, era acompanhado pela satisfação do Avô em ter a família reunida, onde sempre assumia o papel de patriarca, não que ele o impusesse, mas porque simplesmente lhe era inato. Todos nós sentíamos a sua presença como apaziguadora, unificando as várias gerações que se juntavam nesta época tão especial para todos, não só pelo que representa, mas também pela ausência dramática da Avó em outro longínquo Natal.

Por vezes o esforço de procura é longo e nem sempre bem sucedido. Na melhor das hipóteses lá se encontra um documento, uma carta, ou uma fotografia que se suspeitava existir, mas às quais se tinha perdido o rumo. Outras vezes são estes fragmentos do passado que nos encontram; aparecem no meio de coisas insuspeitas, em estantes poeirentas e gavetas esquecidas. Mas o melhor é mesmo quando nos vem ter à mão, pela mão de outras pessoas. À surpresa de tão inesperado achado acresce, quase sempre, a originalidade do artigo.

Pode parecer que ando a fazer colecção de itens relacionados com o Avô. E se calhar ando mesmo. E o último que adicionei á compilação foi oferecido pelo primo Xico, juntamente com o sorriso gigante de quem sabe que está a ofertar algo muito valioso. Pela sua originalidade e interesse, decidi colocá-lo aqui.

É uma boa memória, a do Sr. Mateus. O Avô Mateus sempre foi o Avô para nós, mas para muitas pessoas ele era o Sr. Mateus, um empresário e homem de negócios (de sucesso, pode-se adiantar). Ao contrário de muitos outros homens de negócios, que vingam na vida e são conhecidos (e definidos) pelos seus negócios, os do Avô são um detalhe que apenas acrescentam algum interesse adicional á sua vida. Ainda assim, teria sido impossível omitir esta faceta no livro, e por isso escrevi em tempos um capítulo sobre o tal Sr. Mateus, o empreendedor. Desde barbeiro a construtor civil, está lá (quase) tudo. Ou pelo menos muita coisa.

Foi um capítulo interessante de escrever, sobretudo porque não senti a mínima pressão de dizer tudo o que o Avô fez ou enumerar todos os negócios que teve. Do ponto de vista dos netos, a partir do qual o livro é escrito, o Avô continuaria a ser o maior, tivesse ou não sucesso nos negócios. E assim este capítulo é uma espécie de bónus no livro. E dar um bónus é sempre bom.

Por agora fica a recordação do Avô na sua faceta de construtor, e a lembrança das suas incursões nas obras, mazelas resultantes dessas aventuras, e das lições que nos dava sobre cofragens, assentamento de tijolo, pés-direitos, reforço das vigas e derivados.

Foi uma forma diferente de ver um filme, a de sábado à tarde. Não havia a escuridão da sala de cinema ou a mudez da assistência, nem a habitual história ficcionada, romanceada ou simplesmente inventada. A sala estava acesa com a luz que vertia da janela gigante, os meninos corriam e riam por todo o lado, a conversa enchia o ar. O filme, feito de histórias reais que se ligavam em trama apertada no tecido do passado, estava diante dos nossos olhos e ao alcance das nossas mãos, espalhado em cima da grande mesa que servia de tela. Este filme aconteceu, via-se nas centenas de fotografias e outros tantos documentos que falavam aos nossos olhos, através dos factos documentados e com as emoções que emanavam das cartas. Era um filme que jamais algum cinema poderia ter em cartaz.

Vimos este filme no caloroso conforto da sala da tia Micaela. Foi uma tarde magnífica que consumou a promessa de uma visita para revisitar o passado. E foi muita a informação recolhida para o livro nesta tarde. Décadas de história contavam-se à nossa frente nos factos espalhados em certidões de notário, registos, óbitos, escrituras e incontáveis cartas de encorajamento, consolo e de calorosas discussões. Conseguimos desenterrar verdadeiros tesouros de datas, nomes, locais e momentos.

Grande parte dos documentos relacionava-se com a fundação e tempos primordiais do Centro Bíblico e Acampamentos de Esmoriz (CBAE, no seu nome original), e com as controvérsias doutrinárias que eclodiram dentro da Igreja Evangélica de S. João da Madeira, bem no início da década de 70. O papel activo do Avô em ambos os assuntos era evidente nos documentos. Os bons amigos, o Sr. Timóteo e o Sr. Joel, também lá estavam, lado a lado com o Avô, presentes com o mesmo empenho e tenacidade. Curiosamente, também lá estava um outro bom amigo – o Walter Alexandre – igualmente com um papel de relevo.

As fotografias não eram menos cativantes e algumas delas vieram engrossar o lote de imagens coleccionadas para o livro e blog. Entre estas, contam-se algumas particularmente interessantes (e a pedir para serem divulgadas). São imagens que revelam o lado de viajante internacional do Avô, numa visita a Israel em 1979. A evocação do passado distante do Antigo Testamento, tão forte naquelas fotografias, trouxe-me á memória a ancestral bênção sacerdotal do povo de Israel, e que me parece adequada à vida do Avô.

“O Senhor te abençoe e te guarde; Senhor faça resplandecer o rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o Senhor sobre ti levante o rosto e te dê a paz.” (Números 6:24-26)

No final daquela tarde fiquei preso às imagens que vi, a pensar nas histórias que contam e naquelas que ocultam. A grande história de uma vida cheia é espantosa; a beleza dos detalhes não é menos impressionante.

Sinto o dever e a responsabilidade de captar parte desse brilho no livro.

P.S. Shalom aleichem – Saudação hebraica que significa “A Paz seja contigo”

Para aqueles que no Domingo passado perderam a celebração do 51º Aniversário da Igreja Evangélica de Cucujães, fica aqui um pequeno conjunto de imagens que lá foi mostrado. O título deste breve evocar do passado da nossa comunidade foi o tema escolhido para este Domingo, o primeiro de todos os outros deste mês que serão igualmente dedicados á celebração do aniversário. O objectivo deste dia foi recordar aqueles que nos precederam e que estabeleceram as fundações da nossa comunidade. O Rebanho Intemporal é uma alusão a estes e a todos aqueles que em todas as épocas seguiram o Grande Pastor.

Para quem leu a entrada anterior, esta é óbvia. O motivo pelo qual esta comunidade existe, e pelo qual estas linhas estão a ser escritas, é porque o Avô Mateus obedeceu á voz do Espírito e, contra muitas adversidades, deu início a este trabalho que mudou radicalmente a vida de centenas – senão mesmo milhares – de pessoas. Quem já leu outras entradas como Os Bons Amigos, ficará contente por saber que estes estiveram ao lado do Avô desde o primeiro momento neste empreendimento, o que revela o poder do trabalho em comunidade.

“Que o Deus da paz, que ressuscitou Jesus, nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas, selando com o seu sangue a eterna aliança, vos conceda aquilo de que precisam para realizarem a sua vontade.”
(Hebreus 13:2)


Banda sonora: “The Holly and the Ivy” by Andrew Peterson

No meio de incontáveis recordações do Avô sobressaem algumas pelo seu brilho especial, tal como o cintilar intenso de algumas estrelas as destacam do povoado mar negro de luzeiros. Algumas são de momentos únicos, outras apenas de momentos comuns que, por algum motivo, deixaram uma impressão mais forte no instável universo das memórias.

Lembro-me com particular limpidez do dia em que o Avô me telefonou a convocar para um encontro no seu escritório. Tinha algo importante para me mostrar. O tom animado da sua voz denunciava ser coisa interessante e agradável. Quando cheguei ao escritório pouco depois, encontrei o Avô com o seu habitual sorriso de marca. Mas naquele dia havia algo mais no seu sorriso, uma certa efervescência expectante. O Avô estava animado com o que quer que fosse que tinha para mostrar. Após o nosso habitual cumprimento de beijos e puxares de orelhas simulados, um pouco mais apressado naquele dia, ele abriu uma das gavetas da sua secretária e tirou de lá… uma folha de papel!

Confesso que não fiquei surpreendido. Fotocópias não são propriamente objectos que causam impressões fortes. Mas o sorriso persistente sugeria que aquela folha trazia alguma surpresa. E assim foi. Era uma cópia do documento original do contrato de arrendamento da pequena garagem onde a comunidade da Igreja Evangélica de Cucujães se fixou e onde permanece até aos nossos dias. Era um fragmento da história da nossa comunidade; ligava as origens a uma data, e o nome do Avô a ambas.

A partilha daquele documento foi um acto de cumplicidade no esforço de estabelecer a veracidade do relato da história da nossa comunidade. Ainda que não acreditasse que um neto pudesse colocar a palavra de um avô em causa, o Avô sentiu a necessidade de validar a sua com este documento. Agora pode parecer um pouco despropositado, mas na altura o Avô enfrentava o descrédito de algumas pessoas da comunidade que tentavam apagar o seu nome da fundação e do trabalho original. É impossível separar a história do Avô Mateus da história da Igreja Evangélica de Cucujães porque fazem parte uma da outra. O Avô foi um dos membros fundadores desta comunidade e a sua assinatura no contrato inicial de arrendamento do espaço atesta a sua posição de pioneiro.

A cópia deste documento andou muito tempo perdida no meio de tantos outros segredos nas minhas gavetas. Durante todo esse tempo sempre a procurei sem sucesso e cheguei a acreditar que a tinha perdido. Curiosamente reencontrei-a há alguns meses na companhia de algumas fotografias e cartas mais antigas. Parece que aguardou pacientemente pelo momento certo de se deixar encontrar.

Escusado será dizer que todas estas histórias vão figurar no livro, mas nem sempre com o mesmo detalhe. Infelizmente alguns dos seus contornos foram esbatidos pelo esquecimento dos anos.

Os pais do Avô: Ludovina Rosa de Jesus e José Maria Soares Mateus. Fotografia de estúdio tirada em Oliveira de Azeméis (Junho de 1954).

Quando se é pequeno e se olha para um avô que é “velhinho”, é absurdo pensar que ele foi em tempos jovem e teve um pai e uma mãe. Depois vamos crescendo e inevitavelmente descobrimos o axioma central da biologia – toda a gente tem progenitores – e que destrói a nossa visão da natureza sempiterna dos avós.

No caso do Avô Mateus, só tomei consciência disto quando um dia ele me falou dos seus pais. Até aquele momento o Avô era um ser independente sem uma causa primária que o tivesse trazido á existência. Foi uma informação que me causou alguma estranheza inicial, mas que logo foi assimilada. A partir desse momento os pais do Avô nasceram para mim e, aos poucos, foi conhecendo os traços de carácter destes meus familiares distantes. De todas as vezes que o Avô falou deles, foi sempre para os elogiar de alguma forma.

Já aqui falei da mãe do Avô, mas nunca o tinha feito do seu pai. Mas eis que a oportunidade surge para o fazer e por um motivo especial. Um dos comentários da última entrada do blog foi feito por um primo que está no Brasil, e que queria saber se a mãe do Avô tinha o mesmo nome da bisavó dele. E tem! Ludovina Rosa de Jesus é o nome da nossa bisavó e José Maria Soares Mateus o do nosso bisavô. Quando o Avô Mateus nasceu tinham 29 e 33 anos, respectivamente.

Conhecendo o ávido interesse dos leitores do blog pelas imagens nostálgicas de outros tempos, não poderia deixar aqui ficar esta informação sem uma boa fotografia do casal em questão. Mas a coisa ainda fica melhor! Para acompanhar a fotografia fica uma breve, mas objectiva, descrição da natureza de ambos, feita por quem os teve como pais. São excertos retirados do livro autobiográfico escrito em 2004 pelo Tio Zé, que emigrou para o Brasil em 1952, dois anos antes de esta fotografia ter sido tirada.

‘’Meu pai era um homem corajoso, grande lutador pela vida, sem cultura, mas muito responsável e trabalhador. Sua profissão era de carpinteiro. Trabalhava muito para poder sustentar a prole (…) Ele não só lutava, mas também nos deu o exemplo de trabalho e carácter integro (…) Minha mãe era aquela mulher virtuosa, bem comparada a Provérbios 31:10-13; e, com sabedoria, passou para as filhas aquilo que ela era (…) nunca vi brigas entre meu pai e minha mãe, apesar de grandes lutas em tantas dificuldades da vida, na criação de muitos filhos, etc. (…) Meu pai tratava muito bem a minha mãe e carinhosamente a chamava de Bininha.’’

Quando tudo parece ir bem e vida promete anos longos e cheios, somos bruscamente agredidos pela morte que assalta e ataca, ofende e humilha, separa e destrói, sem que possamos resistir à sua investida ou atrasar o seu avanço. Inesperadamente, a morte agrediu a nossa família e reclamou a vida do primo Alexandre.

No meio desta perda injustificada, assiste-nos o conforto das promessas do amor e presença de Deus e a esperança que a fé em Jesus nos garante. Ficamos com estas promessas e garantias, e uma vasta nuvem de boas memórias do nosso primo.

Os momentos passados entre os primos e o Avô combinam algumas das recordações mais fortes entre as memórias que juntei desde o início deste projecto. E por isso tive de escrever sobre elas e sobre os acontecimentos que as compõem. Num capítulo em particular, relembro os tempos que íamos a casa do Avô dormir e tudo o que isso significava para nós. Embora este episódios envolvam muitos dos primos, as imagens mais nítidas que tenho desses tempos são do Alexandre. Foi com ele que passei mais tempo na casa do Avô. Em conjunto criamos uma intimidade e cumplicidade com o Avô que vencia a barreiras das idades. Fazíamos a meditação com ele e, já depois de o deixar a dormir no seu quarto, entregávamo-nos à conversa que se estendia pelas horas mais longas da noite. Éramos companheiros numa viagem em que partilhávamos segredos, alegrias e receios, sem qualquer reserva.

Agradeço a Deus a memória deste passado partilhado com o Alexandre e pela oportunidade de o ter registado no livro. Não podia agora deixar de partilhar o esboço deste capítulo, que foi um dos que mais me emocionou a escrever. Embora não consiga transcrever o detalhe e intensidade das memórias que guardo do Avô e do Alexandre, acredito que pelo menos a evocação dessas imagens seja de algum conforto para quem ler.

Capítulo 12 – A Fresca Aragem da Noite (draft)

A morte investe contra o nosso corpo mortal, mas não tem poder para reclamar a alma daqueles que, pela fé em Jesus, a entregaram nas mãos de Deus. Tal como o Alexandre fez um dia…

“Jesus então declarou-lhe: Eu sou a ressurreição e a vida. O que crê em mim, mesmo que morra, há-de viver.”
(João 11:25)

Dias cinzentos e frios trazem á memória outros dias… dias de calor e sol de um passado distante, de momentos que não vivemos, mas que ainda assim evocamos.

A recordação pode ser a preto e branco, mas a luz não deixa de ser irrepreensível. Faz lembrar os verões perfeitos e a alegria neles contida. O sorriso é momentâneo e intemporal, como se aquele instante nunca tivesse fim; Como se a vida fosse só um prelúdio para uma outra infinitamente mais perfeita e abundante; Como se viver o momento e ser feliz por ele fosse uma expressão de gratidão pela eternidade esperada.

Esta fotografia veio no meio de outras tantas descobertas recentemente. Foi tirada num dia de sol e calor, com os Avós no calor da vida. É perfeita.

Um dia de sol e calor na Ria de Aveiro

Faz amanhã um ano que o Avô Mateus partiu e para o lembrar, um dos netos juntou algumas imagens e publicou no seu blog. Vale a pena ver e ouvir…

http://3-acontaquealguemfez.blogspot.com/2009/11/memorias-do-avo-mateus.html

avo_eugenia_jovem

Se ainda estivesse entre nós, a Avó Eugénia celebraria hoje 90 anos numa festa partilhada com um dos filhos, o Tio David. Infelizmente, a Avó partiu no ano do seu 50º aniversário, pelo que faz hoje também 40 anos desde o dia que celebrou o seu último aniversário.

As referências à Avó Eugénia têm sido frequentes no decurso da escrita do livro. Embora ela tenha desaparecido cedo, manteve-se de alguma forma presente na vida do Avô até ao fim dos seus dias. Apesar das tentativas, ainda não consegui agregar um relato suficientemente organizado da vida do Avô Mateus ao lado da Avó. A falta de informação tem-me levado a desenhar com a imaginação os espaços deixados em branco pela falta de factos.

Por vezes imagino como teria sido a vida da nossa família se ela tivesse ficado ao lado do Avô por mais tempo. A minha maior interrogação, no entanto, está em saber como teria sido a relação entre os netos e a Avó. Sendo impossível de determinar, não é de todo impossível imaginar que teria sido uma experiência incrível. Disso não há a menor dúvida.

Às vezes sonho como seria entrar na cozinha do Avô e encontrá-lo lá com a Avó a cozinhar, receber deles os calorosos beijos de avós, sentar-me à mesa a comer ao seu lado, e sentir o olhar intenso que só as avós fazem quando os netos se deliciarem com a sua comida.

Olhando agora para trás e lembrando o nosso relacionamento com o Avô, é evidente que ele se esforçou por compensar a falta da Avó, dando-nos o amor e o afecto que teríamos encontrado nela.

A avaliar pelas recordações que ficaram, a Avó foi uma pessoa distinta em muitos aspectos, na sua simplicidade, beleza, simpatia mas, acima de tudo, na sua entrega aos outros. Dizem que era um exemplo de amor – uma manifestação simples e pura do amor de Deus.

As saudades de quem a conheceu devem ser imensas. Pelo menos a julgar pelas saudades de quem nunca a conheceu…

Talvez seja inexplicável como coisas infelizes nos podem fazer lembrar outras opostamente alegres. Talvez não passe de uma rara contradição. A semana passada, rica em tempo de antena daquele que já é conhecido como o idoso mais rancoroso de Portugal, trouxe consigo uma dessas contradições. Apesar da avançada idade do nosso distinto Nobel da Literatura, continua a mostrar apetência para surpreender (pela negativa) quase toda a gente.

Confesso que foi apanhado de surpresa. É certo que as suas palavras, atulhadas de falsa ignorância e intelectualidade desonesta, causam algum repúdio. Ainda assim, ao olhar para ele, para a sua postura e as suas linhas de rosto, e ao ouvir as suas frases abafadas nas últimas palavras, comecei aos poucos a desenvolver um contraditório sentimento de empatia.

Não demorei a perceber o motivo. As características evidentes da avançada idade fizeram-me lembrar o Avô Mateus. Aos poucos, o que era infeliz e triste foi dando lugar a uma boa recordação que, por breves momentos, aliviou a constante saudade do Avô. Mas as afinidades entre o Saramago e Avô Mateus ficaram-se por aí. Partilhando os jeitos e alguma postura da velhice, tudo o resto era divergente.

O Avô Mateus era dono de uma beleza rara. Os seus olhos azuis brilhavam e o seu permanente sorriso quente e genuíno cativava qualquer pessoa. O mesmo não se pode dizer do Saramago, dono de uma expressão pesada e feições agravadas por uma leve atitude de fúria. O Avô irradiava amor e tinha um sentido de humor excepcional; o senhor da televisão parecia imanar raiva e não ter um resquício de simpatia. Parecia até nem saber rir. O decano Saramago tem a sua obra lida por milhões de pessoas em todo o mundo. É, sem qualquer margem para dúvidas, uma personalidade de renome mundial. Na sua recatada fama, o Avô Mateus apenas era conhecido por um grupo modesto de pessoas. A sua obra, que o destacou claramente dos seus pares, foi ainda assim despretensiosa.

Como o Avô Mateus, incontáveis outros trilham o percurso dos seus dias sem reconhecimento internacional, fama ou outra qualquer distinção excepcional. No entanto, a sua dedicação a Deus e ao próximo, fazem com que o fruto da sua vida inspire, influencie e transforme a vida de milhares de pessoas, ainda que a grande maioria nunca venham a conhecer o seu nome. O Avô Mateus não escreveu obras literárias para levar a sua mensagem às pessoas. Em lugar disso, fez da sua vida uma obra – um poema de Deus – lido por todos que o conheceram. Não foram as suas palavras que moveram, foi a sua vida, o seu exemplo e o seu testemunho. Nunca apregoou a sua própria doutrina ou as suas ideias, mas unicamente a mensagem do Evangelho. Nunca foi movido pela raiva, mas sempre pelo amor. O Saramago é um pensador; o Avô Mateus era um sábio.

Ao ouvir o Saramago atacar tudo e todos que não atendam ao seu próprio credo, lembrei-me uma vez mais do provérbio que despertou a vontade de querer escrever um livro de memórias do Avô: “Os que seguem Deus são como uma árvore de vida.” Não pude também deixar de lembrar as primeiras palavras que escrevi para o livro, dedicadas a estas árvores de vida e ao seu valor. Escolhi para título deste capítulo inicial a expressão “Sobre Homens e Árvores.” Se escrevesse igual obra sobre o Saramago, teria que modificar este título para “Sobre Homens e Cactos.”

Na aridez que caracteriza tantas vezes a nossa existência, tal como nas paisagens desoladas de um deserto, os cactos são uma visão comum, um objecto de uma desesperante monotonia. Pouco mais oferecem que espinhos e uma sombra ridícula. A sua proximidade é desaconselhada, como advertem os seus aguçados picos. As árvores, por outro lado, são sinais de vida e esperança. À sua sombra o viajante, cansado e batido pelo sol impiedoso, encontra alívio. Nos seus frutos sacia a fome e sede. As árvores dão alento para continuar a longa e difícil jornada. Os cactos enfatizam o desespero.

O Saramago é um cacto. A sua presença é notada e a sua voz ouvida, mas nada tem para oferecer a quem procura consolo ou busca a verdade. Só se aproxima dele quem é suficientemente louco para receber um doloroso abraço. As suas palavras ferem qualquer um. As árvores gostam da proximidade, e juntas fazem um oásis. Aos cactos está destinado o isolamento.

O Avô Mateus era tudo aquilo que o Saramago nunca virá a ser – uma árvore de vida. O prémio pelas suas obras, atestado por Deus e não homens, é infinitamente superior a um Nobel. O Avô Mateus era um homem humilde com uma vida simples. Com a sua simplicidade e humildade sempre desarmou todas as aparências de importância dos “Saramagos” que com ele se cruzaram.

Teria sido interessante assistir a uma conversa entre ele e o Saramago.

“Deus escolheu aqueles que os homens tinham por ignorantes para envergonhar os sábios e aqueles que os homens tinham por fracos para envergonhar os fortes. Deus escolheu os que no mundo não têm importância nem valor para deitar abaixo os que parecem importantes.”
(1 Coríntios 1:27,28)

As últimas semanas foram particularmente proveitosas no que toca a novas imagens do Avô, não tanto pelo número de novas fotografias encontradas, mas pelo seu significado e idade. As mais interessantes serão aqui apresentadas em breve, juntamente com um pequeno (ou não-tão-pequeno) comentário. Juntam-se a este lote algumas imagens recentes enviadas pela Prima Alda que, no seu esforço incansável de contribuir para este projecto, conseguiu uma vez mais surpreender com as suas fotografias. E é neste contexto que decidi escrever estas linhas.

Neste novo conjunto houve uma fotografia muito especial que me lembrou o humor e boa disposição do Avô Mateus. É um raro momento de diversão que revela a sua habitual boa disposição e apetência para o divertimento. Nesta imagem, tirada durante um momento de descontracção em casa da neta Daniela, o Avô está com o seu “sorriso de marca” e com a sua habitual postura descontraída. O detalhe precioso da fotografia é garrafa de cerveja na mão do Avô, que sugere que foi apanhado a beber em flagrante enquanto assistia à bola, confortavelmente sentado no sofá. Nota-se que o Avô alinhou na brincadeira e isso torna tudo mais interessante. A imagem pode chocar os mais cinzentos, mas a vida é mesmo assim.

Um momento descontraído em casa da neta Daniela (4 de Julho de 2006)

Um momento descontraído em casa da neta Daniela (4 de Julho de 2006)

Sem querer avançar muito nestas matérias, uma vez que no livro recebem a devida atenção, não posso deixar de salientar que o sorriso natural – que definia os traços faciais do Avô – e a sua boa disposição, resultavam de uma mistura de um coração alegre e uma liberdade de preconceitos sobre a sua imagem e sobre o que os outros poderiam pensar dele. Como o Avô sempre dizia, o que importa é agradar a Deus, não aos homens. Com a sua maneira de estar na vida, o Avô mostrava que Deus não tem a natureza cinzenta e aborrecida que geralmente lhe é atribuída.

O seu “sorriso de marca”, a sua habitual boa disposição e o seu humor inigualável são um dos temas centrais do livro, reemergindo um pouco por todo o lado ao longo da narrativa. Alguns capítulos lidam exclusivamente com esta faceta do Avô e com várias histórias a ela ligadas, algumas delas em episódios pessoais, outras em acontecimentos que envolvem várias pessoas (quase sempre os netos, porque era junto destes que o Avô permitia que o seu bom humor andasse completamente livre).

Por agora fica a imagem e a calorosa lembrança do sorriso do Avô e da sua alegria contagiante.

“Um rosto alegre traduz a felicidade dum coração.”
(Provérbios 15:13)

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Esta fotografia, tirada o ano passado no dia de aniversário do Avô, captou o raro momento de alegria absoluta que acontece quando o amor explode e une dois corações distanciados 90 anos.  Mais tarde, ao ver as fotografias daquele dia, percebi que o Avô Mateus ainda teve a invulgar oportunidade de se apaixonar no fim do seu tempo. Apaixonou-se por todos os bisnetos e fez questão de viver e mostrar esse amor.

Para lembrar esse amor, escrevi um curto capítulo designado de Amores de última hora, uma débil tentativa de cristalizar essas manifestações de afecto.

Se ainda estivesse deste lado da vida, o Avô iria celebrar hoje o seu 93º aniversário. Como habitualmente, familiares e amigos estariam ao seu lado a festejar. Para que se saiba, a celebração nunca foi devido ao Avô completar mais um ano, mas antes pelo simples privilégio de o termos connosco durante esse período. Hoje é a primeira vez em décadas que este ritual não se vai repetir. Ainda assim, a data é lembrada para quem o Avô Mateus continua a ser uma presença constante nas suas mentes e corações.

Ao longo de décadas, enquanto a família crescia, o Avô Mateus esforçou-se por reforçar os laços familiares e manter uma unidade que desfiou todas as expectativas. Era o núcleo em torno do qual todos nós gravitávamos, o centro do nosso sistema solar, um sol que nos mantinha presos a si pela força atractiva do seu amor e nos iluminava com a sua luz. A sua presença orientou tantos e evitou que alguns, sem rumo, se perdessem num universo vazio. Acima de tudo, ele evitou que a família fosse um grupo disperso, desligado e disfuncional de pessoas. Ele lembrava-se constantemente de todos nós nas suas orações, e pedia a Deus para nos guardar, fortalecer e dar sabedoria. Para nós, o Avô era a presença visível de Deus na família, do seu cuidado e protecção, das suas incontáveis dádivas.

Não era difícil imaginar que se o Avô não estivesse presente, o nosso sistema familiar, na sua típica complexidade, começaria a perder a sua ordem aos poucos. Sem uma força gravítica suficientemente forte para manter os planetas numa órbita fixa, estes acabam por derivar pelo espaço. Com a partida do Avô e da força do seu amor, a família parece agora divagar insegura no vazio, sem rumo certo, sem um referencial para se orientar. E é por isso tão importante continuar a lembrar o Avô e aquilo que ele representava para nós.

Em relação ao seu aniversário, foi num deles que compôs um poema, um dos poucos registos pessoais e íntimos que deixou escrito. Colado durante anos nas costas de uma fotografia, esteve lá à espera de ser descoberto, o que veio a acontecer há pouco tempo. A fotografia foi tirada no último aniversário que o Avô celebrou na companhia da Avó. Estão lado a lado na sua casa, com o ar alegre de quem tem no colo o primeiro neto. É uma imagem interessante – umas das primeiras a cores do Avô – mas foi a grossura do papel da fotografia que mais me despertou o interesse. Por curiosidade, voltei a fotografia para ver que papel era aquele e, inesperadamente, encontrei um poema escrito pelo Avô no lado de trás.

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Poema escrito pelo Avô Mateus no dia do seu aniversário a 29 de Setembro de 1984

Foi provavelmente uma das descobertas mais significativas desde que comecei a procurar fotografias e outros documentos relacionados com o Avô. No poema, o Avô compara o seu último aniversário ao lado da Avó em 1969, com o que vivia no momento que escreveu aquelas linhas em 1984. Quinze anos haviam passado e as saudades pareciam ser tantas como se tivessem passados apenas 15 dias. Hoje faz vinte e cinco anos desde que o Avô escreveu aquelas linhas, e quarenta desde que celebrou o seu último aniversário ao lado da Avó. Hoje, finalmente, pode celebrar de novo na sua companhia.

O poema é um lamento e é impossível sondar o que ia na alma do Avô. As suas palavras carregam uma atmosfera algo sombria, como se uma nuvem de saudade e tristeza toldasse a luz da esperança. As palavras acusam a dor da perda irreparável da companheira da sua juventude, da perda de uma parte de si mesmo. Independentemente das intenções, uma coisa é certa, o poema foi escrito com lágrimas. Neste mesmo dia, há dez anos atrás, numa longa conversa durante a sua festa, o Avô lembrou a Avó e disse-me: “No dia em que a tua avó morreu, a minha vida acabou, deixou de ter significado. Acabou a minha alegria.”

O Avô viveu até ao fim dos seus dias com esta dor crónica da alma – a saudade permanente da Avó – invadido por um desejo esmagador de a poder ver outra vez, de a abraçar e beijar, nem que fosse por breves instantes. Parece que a sua data de aniversário era uma forte lembrança dos anos que o afastavam da Avó.

Estes dois pensamentos revelam que o amor pela Avó sempre ardeu no seu coração. Ainda que íntimos, merecem ser revelados, somente porque confessam a sua fragilidade e, ao mesmo tempo, mostram a incrível força que o ajudou a aguentar a separação. E anunciam que foi um outro amor que eventualmente acabou por conquistar o seu coração e fazê-lo feliz – o amor de Deus.

“Põe-me como um selo sobre o teu coração, como uma aliança, permanentemente; porque o amor é forte como a morte…”
(Cantares de Salomão 8:6)

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Duas novas fotografias fazem agora parte do arquivo de imagens do Avô. A simples satisfação de as ter conseguido faz-me colocá-las aqui para todos verem, mas não sem uma pequena nota sobre elas.

A mais recente foi recolhida do escritório do meu pai, onde sempre esteve à vista de todos desde o Natal de 2005, quando o Avô ofereceu uma igual a todos os filhos. Curiosamente, só agora me lembrei que seria uma boa imagem para adicionar ao blog e, posteriormente, ao livro. Apesar de ter sido um presente dado em 2005, a fotografia deve ter sido tirada no final da década de 90.

A mais antiga já me era familiar. Desde sempre esteve na sala de casa do Avô, cuidadosamente colocada ao lado de uma fotografia da Avó Eugénia, em molduras gémeas. As fotografias, tiradas talvez na década de 40, conseguiram captar a beleza e amor que brilham nas suas caras. A fotografia da Avó já a tinha conseguido através do vasto espólio fotográfico compilado pelo Tio Josias, mas não a do Avô.

Cada vez que olhava para a fotografia sabia que a tinha que incluir no livro. E então, num qualquer dia das últimas semanas, numa ocasião propícia, aproveitando uma visita inocente a casa do Avô, subi ao andar de cima e, sem qualquer gesto suspeito, removi a fotografia da moldura e trouxe-a comigo. Foi uma espécie de furto muito pouco qualificado, mas por uma muito boa causa. Prometo devolvê-la agora que a digitalizei.

Esta manhã, enquanto conduzia para o trabalho, vim a ouvir o álbum “Soul Anchor” do músico norte-americano Michael Card. Este álbum, como todos os outros deste autor, é um ensaio teológico que, neste caso, tem a Epístola aos Hebreus (Novo Testamento) como tema.

Distraído pelos ares de fim de verão, expectante em relação ao trânsito e já ligeiramente desligado da música, seria improvável que algo nela me levasse de volta às memórias do Avô. Mas então, com as primeiras notas de piano da música “Never will I leave you,” despertou uma das lembranças mais fortes do Avô, daquelas que geralmente se manifestam espontaneamente em lágrimas (os interessados podem ouvir a múcica aqui). O refrão da música repete a promessa de Deus “nunca te abandonarei,” feita a todos aqueles que escolhem segui-lo. Foi escrita para um grupo de cristãos hebreus que se escondiam em Roma. Muitos que a ouviram pela primeira vez enfrentaram a morte às mãos dos gladiadores ou devorados pelas feras no coliseu, no meio dos clamores de multidões delirantes, mas seguros nesta promessa eterna.

Entre todas as lembranças que tenho do Avô a citar as escrituras – e o volume de passagens memorizadas era impressionante – este versículo poderia destacar-se pela sua aparente simplicidade. Mas o que o destacou foi o modo como soavam estas palavras na boca do Avô. “Nunca te deixarei, nem te abandonarei…” Quando o mencionava, não era numa atitude repetitiva e mecânica de reprodução de texto. O Avô costumava citar este versículo quando falava de momentos difíceis que havia passado, que estava a passar, ou sabia estarem para vir.

Olhando para a vida do Avô com todo o seu historial de sofrimento e tribulações (muitos delas estarão relatadas no livro), não é difícil perceber como este versículo, esta certeza inabalável, se tornou tão importante para ele – foi a sua promessa que o manteve firme nas condições impossíveis. Sofrer sozinho é a pior forma de sofrimento. O Avô nunca sofreu sozinho, embora muitas vezes tenha sofrido em silêncio e só.

Para alguns dos netos esta promessa tornou-se o versículo que melhor define o Avô. Ele fez questão que o soubéssemos e nunca esquecêssemos este incrível juramento de amor.

“Não permitam que a paixão do dinheiro vos domine. Contentem-se com o que têm, porque o próprio Deus nos prometeu: Nunca te deixarei, nem te abandonarei. É por isso que podemos dizer confiadamente: O Senhor é quem me ajuda: Não tenho medo de nada! Que mal me poderão fazer os homens?” (Hebreus 13:5,6)

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O Avô na igreja em Cucujães (12/04/2004)

São tantas as memórias do Avô que seria impossível compilar todas num só livro. São tão preciosos estes momentos que seria impensável não os guardar. Embora não estejam necessariamente dentro do âmbito do livro, muitas destas histórias de familiares e amigos que envolvem o Avô merecem ser preservadas. Como repositório destes instantes, este blog conta a partir de hoje com uma nova página, sugestivamente rotulada de Momentos.

Qualquer pessoa poderá ter o seu momento aqui publicado. Poderá ser na forma de fotografias, pequenos filmes ou texto, que deverá ser enviado para davi.misael@gmail.com.

Durante o mês de Agosto encontrei algo especial na minha caixa de correio – uma carta da Sociedade Bíblica de Portugal, assinada por um bom amigo, com um certificado de participação no Projecto A Bíblia Manuscrita em 2004. Como eu, milhares de pessoas receberam uma carta semelhante. Aparentemente, esta ocorrência em pleno mês de férias nenhuma relação parece ter com o Avô Mateus. Mas assim não é. Talvez poucos ainda se lembrem, mas a imagem do Avô Mateus foi utilizada na campanha de divulgação do evento. Não deixa de ser curioso que, alguém que tanto amor tinha pela Palavra de Deus, acabasse por dar a cara por ela.

Seria impensável falar do Avô omitindo esta faceta da sua personalidade. Foi seguramente uma das mais importantes, senão a mais importante. O seu conhecimento das escrituras era admirável e, entre outras coisas, sabia de memórias inúmeras passagens. A sua sabedoria nasceu e crescia das longas horas que passava a ler a Bíblia.

O que começou por ser um capítulo do livro com apenas algumas anotações sobre a relação do Avô com a Palavra, acabou por se transformar num dos mais extensos escritos até agora, o que em si é revelador da importância deste sentimento do Avô. Aos poucos, durante a escrita, umas recordações foram dando lugar a outras, acabando numa torrente de memórias em torno do amor do Avô pela Palavra. De uma forma natural, o capítulo ficou com o nome “O Amor pela Palavra.” Ainda há muito a acrescentar ao que já está escrito e, como tudo o resto no livro, este segmento fica á espera de contribuições.

Fotografia do Avô Mateus utilizada em 2004 na campanha publicitária do projecto nacional A Bíblia Manuscrita.

Fotografia do Avô Mateus utilizada em 2004 na campanha de divulgação do projecto nacional A Bíblia Manuscrita (© R. Mateus)

Aproveitei estes dias de férias aqui por SJM para visitar o quintal do Avô Mateus com os meninos. Como habitual, fomos invadidos por aquele sentimento de aventura assim que cruzamos os portões de casa do Avô, tal como se estivéssemos prestes a entrar em território desconhecido. O quintal do Avô sempre cativou os netos pela sua natureza exótica. “Um pequeno jardim secreto que sempre explorávamos com o mesmo entusiasmo e fascínio,” foi como me ocorreu registar no livro a nossa admiração pelo local. Curiosamente, este fascínio parece ter despertado naturalmente nos bisnetos, que sempre se entregam a aventuras e explorações quando lá andam.
Seguindo o ritual antigo dos netos, sondei demoradamente todas as árvores e arbustos à procura dos tão saborosos frutos que o Avô sempre teve no seu quintal. Constantemente na companhia do M & A, procuramos os frutos como se de um tesouro se tratasse. Todo o esforço foi compensado, como sempre, desta vez em deliciosos morangos, amoras, fisális, maças, laranjas e ameixas. Para fugir ao abrasador sol de Agosto, sentei-me com os meninos no alívio da sombra de uma das árvores, onde juntos e descalços fizemos um banquete do fruto da nossa apanha. Da boca da Abi saiu um espontâneo e inocente “obrigado vovô Mateus.” Nada poderia ter sido dito com mais significado. O Avô, tal como as árvores de fruto do seu quintal, continua a deliciar-nos com as suas memórias e os frutos da sua vida.
Por todas as aventuras passadas e presentes neste território tão fantástico, muitas delas em incursões lideradas pelo Avô, não podia deixar de parte esta Terra do Nunca no livro das memórias. Embora o capítulo sobre a casa do Avô e o seu jardim já esteja delineado, haverá sempre espaço para mais lembranças ou reflexões se estas surgirem. Fica desde já o desafio para todos.

Aproveitei estes dias de férias aqui por SJM para visitar o quintal do Avô Mateus com os meninos. Como habitual, fomos invadidos por aquele sentimento de aventura assim que cruzamos os portões de casa do Avô, tal como se estivéssemos prestes a entrar em território desconhecido. O quintal do Avô sempre cativou os netos pela sua natureza exótica. “Um pequeno jardim secreto que sempre explorávamos com o mesmo entusiasmo e fascínio,” foi como me ocorreu registar no livro a nossa admiração pelo local. Curiosamente, este fascínio parece ter despertado naturalmente nos bisnetos, que sempre se entregam a aventuras e explorações quando lá andam.

Seguindo o ritual antigo dos netos, sondei demoradamente todas as árvores e arbustos à procura dos tão saborosos frutos que o Avô sempre teve no seu quintal. Constantemente na companhia do M & A, procuramos os frutos como se de um tesouro se tratasse. Todo o esforço foi compensado, como sempre, desta vez em deliciosos morangos, amoras, fisális, maças, laranjas e ameixas. Para fugir ao abrasador sol de Agosto, sentei-me com os meninos no alívio da sombra de uma das árvores, onde juntos e descalços fizemos um banquete do fruto da nossa apanha. Da boca da Abi saiu um espontâneo e inocente “obrigado vovô Mateus.” Nada poderia ter sido dito com mais significado. O Avô, tal como as árvores de fruto do seu quintal, continua a deliciar-nos com as suas memórias e os frutos da sua vida.

Esboço feito durante a escrita do primeiro capítulo do livro - Sobre Árvores e Homens.

Esboço feito durante a escrita do primeiro capítulo do livro - Sobre Árvores e Homens.

Por todas as aventuras passadas e presentes neste território tão fantástico, muitas delas em incursões lideradas pelo Avô, não podia deixar de parte esta Terra do Nunca no livro das memórias. Embora o capítulo sobre a casa do Avô e o seu jardim já esteja delineado, haverá sempre espaço para mais lembranças ou reflexões se estas surgirem. Fica desde já o desafio para todos.

O Tio Zé (do Brasil)

O Tio Zé (do Brasil)

Entre os doze irmãos e irmãs do Avô, um sempre ocupou um lugar especial no seu coração – o tio Zé. E por isso não podia deixar de escrever sobre este relacionamento especial.

Há uns meses atrás, pedi à prima Alda que está no Brasil para tentar falar com o tio Zé, na tentativa de obter mais informação sobre o passado do Avô. Acabei por descobrir que o tio Zé escreveu em 2004 um pequeno livro com muitas das suas memórias, e que a prima Alda – sempre disposta a ajudar neste projecto – estava a fazer tudo para que um exemplar me chegasse às mãos rapidamente. Confesso que a espera de apenas algumas semanas foi longa, tal era o desejo de poder ler as memórias do tio Zé. Mas valeu a pena todo o tempo de espera!

Ontem, de uma forma inesperada, recebi finalmente o livro. E entretanto já o li. Nele, o tio Zé relata o percurso da sua vida, de uma forma simples e em traços largos. Como não podia deixar de ser, o Avô Mateus é mencionado e a informação que eu tanto desejava está lá. O tio Zé explica como o Avô Mateus se envolveu com os “evangélicos” e como ele próprio, num esforço de trazer o Chico de volta ao caminho da religião dominante, acabou também por se envolver.

Muitos elementos do livro do tio Zé serão uma ajuda preciosa na tentativa de traçar o percurso do Avô. Pela singularidade do percurso de vida de ambos, em tantas coisas semelhante, decidi dedicar um capítulo do livro aos dois irmãos – duas árvores de vida. O capítulo tem como título “O Chico e o Zé,” numa afectuosa alusão ao modo como eram tratados pelos irmãos. O capítulo já está escrito há alguns meses e vai agora ser significativamente melhorado com a ajuda do trabalho do tio Zé e a dedicação da prima Alda.

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O Chico e o Zé no seu último encontro a 1 de Outubro de 2007 à porta de casa do Avô Mateus

Avó Eugénia

Avó Eugénia

Nenhum dos netos teve o privilégio de conhecer a Avó Eugénia. Mesmo o mais velho de nós, o Daniel, o único que a Avó teve oportunidade de pegar ao colo e acariciar, era na altura muito novo para poder guardar qualquer impressão desses afectos. Ainda assim, a Avó faz parte da nossa história e da nossa vida. Crescemos a ouvir falar da mulher excepcional que era, o que não deixou de nos impressionar e inspirar. A julgar pelas palavras do Avô, tios e amigos, a Avó era uma pessoa amada e um exemplo do amor em acção – um amor que era sempre grande e sentido nas pequenas coisas do quotidiano.
A Avó foi o grande amor do Avô – a verdadeira história de amor da sua vida. Mesmo depois de ter partido continuou a moldar a personalidade do Avô. Falar do Avô sem lembrar a Avó é por isso impossível. Ela esteve sempre presente até ao fim dos dias do Avô, na sua mente e no seu coração, numa saudade crónica, em parte aliviada pela certeza do reencontro eterno.
A morte nunca os separou, nem as pequenas coisas da vida. O Avô continuou a sua depois da Avó partir e, como ele mesmo reconhecia, nem sempre da melhor forma no que respeita às coisas do coração. Mas as escolhas que tomou nessas matérias, e que tantas críticas atraíram, não foram por esquecimento desse amor primordial ou por desconsideração, mas antes pela confusão emocional que o assaltou depois da separação da sua amada. “O coração tem razões que a própria razão desconhece,” escreveu o brilhante filósofo e matemático Blaize Pascal. Como cristão esclarecido, ele sabia que a natureza humana leva-nos, inexplicavelmente, a trilhar alguns rumos invulgares. A razão humana pode nunca conseguir explicar o rumo do coração do Avô. O próprio Avô não conseguia.
Se algumas das vozes que se levantaram contra ele tivessem trocado o discurso da condenação pelo da consolação, talvez as coisas tivesses sido diferentes. Poucos tentaram perceber a tragédia de perder uma esposa de repente e ficar só com uma casa cheia de filhos para governar.
Seria impossível contornar estes aspectos ao escrever as memórias do Avô, especialmente o do papel da Avó Eugénia. Em relação a ela, socorri-me das memórias partilhadas de quem a conheceu e amou. As poucas que consegui coleccionar fazem-me querer saber muito mais. Dedico um capítulo do livro ao relacionamento do Avô e da Avó que designei de “1969” – o ano em que a Avó partiu e a vida do Avô e dos tios mudou radicalmente.
Tive a oportunidade de saber pela boca do Avô Mateus o que ele sentia pela Avó, num “segredo” revelado durante a festa do seu 84º aniversário. O segredo deixou de o ser naquele momento… o Avô tinha de o desvendar. E por isso incluí-o no livro.

Nenhum dos netos teve o privilégio de conhecer a Avó Eugénia. Mesmo o mais velho de nós, o Daniel, o único que a Avó teve oportunidade de pegar ao colo e acariciar, era na altura muito novo para poder guardar qualquer impressão desses afectos. Ainda assim, a Avó faz parte da nossa história e da nossa vida. Crescemos a ouvir falar da mulher excepcional que era, o que não deixou de nos impressionar e inspirar. A julgar pelas palavras do Avô, tios e amigos, a Avó era uma pessoa amada e um exemplo do amor em acção – um amor que era sempre grande e sentido nas pequenas coisas do quotidiano.

A Avó foi o grande amor do Avô – a verdadeira história de amor da sua vida. Mesmo depois de ter partido continuou a moldar a personalidade do Avô. Falar do Avô sem lembrar a Avó é por isso impossível. Ela esteve sempre presente até ao fim dos dias do Avô, na sua mente e no seu coração, numa saudade crónica, em parte aliviada pela certeza do reencontro eterno.

A morte nunca os separou, nem as pequenas coisas da vida. O Avô continuou a sua depois da Avó partir e, como ele mesmo reconhecia, nem sempre da melhor forma no que respeita às coisas do coração. Mas as escolhas que tomou nessas matérias, e que tantas críticas atraíram, não foram por esquecimento desse amor primordial ou por desconsideração, mas antes pela confusão emocional que o assaltou depois da separação da sua amada. “O coração tem razões que a própria razão desconhece,” escreveu o brilhante filósofo e matemático Blaize Pascal. Como cristão esclarecido, ele sabia que a natureza humana leva-nos, inexplicavelmente, a trilhar alguns rumos invulgares. A razão humana pode nunca conseguir explicar o rumo do coração do Avô. O próprio Avô não conseguia.

avos

O casal Mateus

Se algumas das vozes que se levantaram contra ele tivessem trocado o discurso da condenação pelo da consolação, talvez as coisas tivesses sido diferentes. Poucos tentaram perceber a tragédia de perder uma esposa de repente e ficar só com uma casa cheia de filhos para governar.

Seria impossível contornar estes aspectos ao escrever as memórias do Avô, especialmente o do papel da Avó Eugénia. Em relação a ela, socorri-me das memórias partilhadas de quem a conheceu e amou. As poucas que consegui coleccionar fazem-me querer saber muito mais. Dedico um capítulo do livro ao relacionamento do Avô e da Avó que designei de “1969” – o ano em que a Avó partiu e a vida do Avô e dos tios mudou radicalmente.

Tive a oportunidade de saber pela boca do Avô Mateus o que ele sentia pela Avó, num “segredo” revelado durante a festa do seu 84º aniversário. O segredo deixou de o ser naquele momento… o Avô tinha de o desvendar. E por isso incluí-o no livro.

“Quem arranjar uma mulher virtuosa, é como se tivesse encontrado um tesouro de alto valor. O seu marido tem confiança nela, e os recursos materiais nunca lhe faltarão. Nunca se tornará um empecilho para o seu esposo; pelo contrário, sempre o ajudará a vida toda. (…) Os encantos femininos podem enganar; a beleza não dura sempre. Mas uma mulher que ama e teme Deus, essa merece todos os elogios. Será louvada por tudo o que faz, e os seus actos virtuosos serão reconhecidos publicamente.” (Provérbios 31:10-12,30,31)

Esta manhã, enquanto atravessava a ponte de autocarro e deixava o olhar nadar pelo Tejo a perder de vista, com as ideias a vaguear por recordações e sensações, dei comigo a pensar no tão querido Walter Alexander. Uma lembrança recorrente mas sempre preciosa. Invariavelmente, à sua recordação vem sempre associada uma outra, as últimas palavras do Salmo 19 com as quais ele sempre termina as suas orações. Estas memórias estão tão intimamente ligadas que é impossível dizer onde uma acaba para dar lugar à outra.

O Avô Mateus e o Walter tinham um respeito e admiração mútua, conquistado e acarinhado por anos de cumplicidade no temor e amor a Deus. Eram amigos de longa data, ainda que para o Avô o Walter fosse um “rapaz novo.” Eram igualmente um exemplo para os crentes nas palavras, na conduta, no amor, na fé e na pureza. O Avô falava muito dele e do seu trabalho, e sempre fez tudo ao seu alcance para o apoiar. Partilhavam uma natureza semelhante no que toca à sabedoria, amor pela Palavra e dedicação a Deus. E no sentido de humor.

Só conheci o Walter quando ele regressou a Portugal já na década de 90 e veio morar para S. João da Madeira. Descobri por essa altura que ele e a Elizabeth já tinham estado em Portugal muitos anos antes a colaborar com várias igrejas. Desde então eram vistos como exemplos e fonte de inspiração. O Avô Mateus lembrava-me isso frequentemente, e não poucas vezes da sua eloquência na pregação da palavra e na exortação. Um dom admirável que o Avô tanto apreciava.

Por vezes, ao olhar para as fotografias daquele tempo, tento encontrar os rostos – distintos pela sua beleza – do casal escocês que tantas pessoas marcou. E ainda marca, é certo. Até agora ainda não os consegui encontrar. Deixo aqui um pedido de partilha para quem tenha alguma fotografia do Walter e da Elizabeth em Portugal, ou onde o Avô Mateus e o Walter apareçam juntos.

Espero ainda conhecer algumas dessas histórias onde o Avô e o Walter se cruzam. Espero ter o privilégio de ouvi-las pela boca do próprio Walter.

“Que as minhas palavras te sejam agradáveis, assim como os pensamentos do meu coração, Senhor, minha rocha e meu libertador!” (Salmos 19:14)

Baptismo da Bisavó Ludovina Rosa de Jesus, mãe do Avô Mateus (Rio Vouga, Cacia)

Baptismo da Bisavó Ludovina Rosa de Jesus, mãe do Avô Mateus (Rio Vouga, Cacia, 1965)

Provavelmente muitos já tenham esquecido, mas um dos momentos mais emocionantes da vida do Avô Mateus está registado nesta fotografia. Não podia, portanto, deixar de mostrar aqui uma raridade de tamanha importância. Esta fotografia foi tirada no exacto momento em que a sua mãe, Ludovina Rosa de Jesus, imergiu das águas após o seu baptismo. A Bisavó Ludovina tinha então uma idade a rondar os 90 anos e quase igual número de quilos. O peso e a idade, ou a combinação dos dois, não tinham sido impedimento, um pormenor que o Avô sempre enfatizava.

O Avô falava deste momento com uma comoção tal que os seus olhos brilhavam pelas lágrimas de alegria que facilmente afloravam. Foi o culminar de uma vida que, próxima do seu desfecho, se rendeu ao amor de Deus. Durante décadas, o Avô esperou que este momento e orou fervorosamente para o poder testemunhar.

Esta é uma das duas fotografias que o Avô mais vezes me mostrou e sobre as quais mais falava. A outra será aqui apresentada em breve.

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Desenho do livro de notas do autor (entretanto a neta Daniela observou - com razão - que e a tampa do frasco está mal representada, uma vez que a original era mais larga)

No fim-de-semana passado tive a felicidade de encontrar um dos meus alimentos favoritos – favos de mel. Como qualquer iguaria, esta não é menos rara e difícil de apanhar. Como tudo que é exótico, é também adquirida a um preço acima do seu valor real. Mas vale a pena, não só pelo sabor, mas pelas memórias que desperta. Invariavelmente, sempre que sinto o aroma ou paladar do mel, lembro-me do Avô Mateus. Este reflexo condicionado, partilhado por muitos dos netos, foi adquirido ao longo de anos, de tantos que foram os famosos lanches de bolachas com mel na cozinha do Avô. Estas memórias devem ser as primeiras e mais belas que temos do Avô.

Curiosamente foi com esta memória partilhada que comecei o esboço do livro, e foi também o primeiro capítulo que escrevi, de nome “Doces Memórias.” Define o estilo para todo o livro.

Como o trabalho ainda vai na forma de “versão preliminar,” qualquer detalhe adicional dos participantes pode revelar-se precioso.  Em jeito de aliciação, deixo algumas linhas do final deste capítulo, ficando aberto a sugestões, correcções, ou outras quaisquer acções que ajudem a melhorar a obra.

“Ficaria connosco para toda a vida, esta imagem de um homem de palavras e sabedoria doces como mel. Na singela perfeição daqueles momentos, entregues a um simples prazer, nunca poderíamos imaginar que aquele mel e aquele cerimonial de alegria seriam uma metáfora para o nosso relacionamento com o Avô (…) Cúmplices neste segredo de gerações, guardamos com o Avô estas doces memórias que incansavelmente saboreamos ao longo dos anos, as primeiras de muitas que entretanto iriam aparecer. Só por si, estas recordações seriam uma herança inestimável se nada mais ficasse da memória do Avô Mateus. Ficaram como uma lembrança perfeita da infância…”

O Autor

Um certo e determinado neto em viagem ao passado do seu Avô

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